Na fronteira entre Brasil e Argentina, no noroeste do RS, contrabandistas cruzam os 300 metros que separam os dois países introduzindo ilegalmente em território gaúcho milhares de sacas de soja do país vizinho. Com isso, os municípios no lado gaúcho da fronteira em que ocorre o contrabando de soja acabam turbinados economicamente.
Em 2020, no último número disponível, a cidade de Tiradentes do Sul produziu 7 mil toneladas de soja, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Mas a emissão de notas fiscais pela prefeitura somou 42 mil toneladas. Ou seja, 35 mil toneladas foi a quantidade de soja não plantada no município.
Foram ouvidos os mandatários dos três municípios que mais têm ocorrências de contrabando de soja em seu território. O prefeito de Tiradentes do Sul, Alceu Diel (PSDB), considera que o assunto está amornando, "porque a polícia tá prendendo todo mundo". Informado pela reportagem de que o contrabando continua, ele é sincero, ao falar da questão econômica:
— Olha, para o município não é ruim (o contrabando). O dinheiro circula bastante. Geralmente tiram nota do soja, acredito que ninguém compra sem nota, a cooperativa pelo menos não compra. E aí circula. No mercado, no comércio, no posto de combustível.
Diel diz que não sabe como está a questão das notas fiscais de produção de soja emitidas pelo município, muito maiores do que a produtividade real de colheita.
A reportagem questionou também o fato de, no ano passado, policiais civis terem apreendido um trator-esteira que trabalhava para melhorar um dos portos privados clandestinos. A máquina pertencia à prefeitura de Tiradentes do Sul.
O prefeito diz que ficou sabendo dois dias depois e que seu secretário de Obras justificou o fato: uma máquina privada caiu no rio e um trator-esteira da prefeitura foi retirá-la da água. Aí foi cavado um buraco para fazer o socorro. Os policiais teriam chegado quando estava no local apenas a máquina da prefeitura e acreditaram que ela estava deslocada para melhorar a via de acesso para contrabandistas, o que o chefe do Executivo nega veementemente.
Diel também comenta o fato da produtividade "recorde" em Tiradentes do Sul, onde algumas propriedades pequenas têm média de 250 sacas por hectare, quando este ano a média gaúcha foi de 32 sacas.
— A gente sabe que várias pessoas emprestavam bloco do produtor para o contrabandista tirar nota. Aí o sujeito tem 10 hectares e tirou 3 mil a 4 mil sacas de soja na produção, né...
O vice-prefeito de Esperança do Sul, Gilmar Lucin (MDB), prefere não comentar o assunto contrabando.
— Eu sei por outros, mas não tenho nada a falar. Não participo, não usufruo disso, não tenho comércio. Sei lá até que ponto é bom isso aí.
O prefeito de Crissiumal, Marco Aurélio Nedel (PL), diz que o contrabando é um tema complexo. Como auditor aposentado da Receita Federal, diz que atuava na repressão ao ilícito e, por isso, não apoia, não incentiva e não participa desse tipo de crime. Como não é de sua atribuição, tampouco atua na repressão. Mas admite que a atividade é muito intensa em seu município.
— Temos 12 quilômetros de fronteira com a Argentina e de 20 a 30 portos clandestinos, nesse trecho do Rio Uruguai. Com impacto de destruição ao ambiente, por exemplo.
Ao mesmo tempo, Nedel concorda com seu colega de Tiradentes do Sul ao dizer que a movimentação de cereais acaba integrada à produtividade do município, como se fosse dali.
— E para a população costeira, muito pobre, gera ocupação (serviço). Ainda ajuda a movimentar o comércio. Mas esse ganho fácil atrai facções criminosas e não se restringe à soja, mas também gera contrabando de produtos proibidos, como veneno agrícola, armas, explosivos, drogas e todo o resto que não presta — ressalva.